O Diretor

Frida Kahlo e Sylvia Plath, que nunca se encontraram, dividem a cena na peça do venezuelano Nestor Caballero.

Perguntamo-nos por quê? Qual a semelhança une as duas artistas, a pintora mexicana e a escritora norte-americana? Ambas tiveram uma vida conturbada, mas a maneira como elas lidaram com os fatos de suas vidas não apresenta parentesco, ou melhor, parece quase divergente. Talvez esteja aí a chave para a compreensão das motivações desse autor. Frida, além da poliomelite na infância que a deixou manca, sofreu grave acidente que a obrigou a ficar acamada boa parte de sua vida, usou coletes para a coluna, teve dedos dos pés e parte de uma perna amputada, casou-se com Diego Rivera, que já era um pintor reconhecido, teve três abortos e foi traída muitas vezes, inclusive com a própria irmã. Apesar de todos esses reverses, Frida pulsava vida. Sylvia teve uma vida menos desastrosa, mas um desfecho mais dramático: perdeu o pai ainda na infância, casou-se com o também escritor Ted Hughes, teve dois filhos, foi traída pelo marido e se matou. Lembro-me de uma frase numa peça de Heiner Müller: “Ás vezes um homem não aguenta muito, ás vezes demais”. Essas duas mulheres, ambas casadas com artistas de sua mesma área de atuação, ambas traídas por eles, são dominadas por pulsões de vida e morte, Eros e Tânatos. Podemos cogitar que Frida representasse Eros e Sylvia encarnasse Tânatos. Não é tão simples assim. Ambas trazem as duas pulsões, mas não pode deixar de nos chamar a atenção como cada uma lidou com os fatos. A peça de Caballero não é biográfica, mas o autor vasculha e seleciona fatos, sonhos, desejos, frustrações das duas artistas, como num caleidoscópio ou num jogo dadaísta, em que estilhaços se confundem e misturam, e parecem (só parecem) escolhidos ao acaso.

 

A encenação opta, portanto, não por representar as duas artistas com fi- dedignidade, mas por pescar nesse emaranhado de referências aquilo que dialoga com a nossa vida, nossas pulsões, nossas escolhas, nossa falta de escolhas. As duas personagens ultrapassam o retrato, tornam-se arquétipos. Na peça, onde se dá esse encontro insólito das duas artistas? No limbo? No sonho? No palco apenas? A peça parece comungar

de alguns princípios do surrealismo, onde a realidade não basta para explicar o mundo. Apelamos também para o sonho, o supra-real, o surreal. Aventurar-se neste território não é uma tarefa cômoda, ou acomodada . Tampouco, há escolhas certas. Menos vezes, consegui dizer “ não é assim”. Por que não seria assim se lidamos com os sonhos, com a memória, com a liberdade, com o fato de duas personagens históricas conviverem numa peça não-histórica? Por fim?, por que duas artistas são chamadas de “musas”? Há nessa qualificação uma crítica ao fato delas, em vida, estarem assombreadas por seus maridos?

Ser musa é uma tarefa menor? Faz parte de um mundo machista e misógino caber a função de “musa inspiradora” geralmente às mulheres? Elas foram musas. Mas foram,

também, mais que musas. Disso não tenho dúvida. O resto não é silêncio.

 

Marcelo Mello

Diretor

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